A pensar numa conversa tida há uns tempos numa aula...
Falávamos do modo de ser português e eu apontei o nosso horror aos jardins, que nos merecem quase sempre um tratamento à base de cimento e restos de azulejos, numa estética à la Gaudi.
– Mas – continuei – temos uma verdadeira adoração por hortas. Qualquer sítio é aproveitado para plantar uma couve galega. Nos separadores do IC19, há hortas urbanas, por exemplo. E elas são importantíssimas na economia das famílias. Olhem, uma bela ideia era fazermos aqui na escola uma horta biológica. Assim como assim, ninguém parece aproveitar o espaço ajardinado… ao menos, podíamos ter comida saudável e fresca no refeitório!
Eles olharam para mim incrédulos: ninguém queria pegar na enxada, no ancinho, no regador. Ninguém queria ver nada a medrar da terra. Séculos e séculos duma vida no latifúndio, arando e servindo, deixam marcas. Uma horta? Quando uma visita ao supermercado basta para trazer todas as hortaliças directamente da prateleira para o prato?! Sem precisarem de ser semeadas, plantadas, regadas, colhidas, arranjadas, lavadas! Ó prof, deixa-te mas é de delírios!
E assim ficámos: eles desprezando o meu glorioso projecto; eu sonhando operar uma mudança radical na cadeia de produção e consumo de alimentos na escola.
Via-nos já, numa aurea mediocritas, cultivando o campo. Professores, alunos, funcionários, todos, lado a lado, trabalhando para o bem comum, entre cenouras e repolhos, entre batatas e cebolas, entre galinhas e ovelhas, numa espécie de reforma agrária new age e ecologista. As televisões (a começar pela SIC que, julgo eu, continua a ter um cubículo na ESTG) dar-nos-iam destaque. A pouco e pouco, a nossa horta, transformar-se-ia num todo autossustentável, com microgeração, sem adubos químicos (todos eles viriam da massa da biomassa), sem pesticidas, sem nada de coisas más e só com coisas boas. O país poria os olhos em nós. Seríamos capa da Visão, artigo de fundo na Única. Finalmente, o New York Times dedicar-nos-ia um artigo como aquele das energias renováveis. O nosso exemplo seria seguido. E, tão ou mais importante que isso, nunca mais no refeitório levaríamos com comida de má qualidade. Tal como me contaram que acontece em Harvard, os nossos cérebros estudiosos e académicos seriam alimentados apenas com os melhores nutrientes.
Ó prof, mas que ideia peregrina! Achas?! Achas que a nossa horta ia assim, mudar o mundo?!
Por isso, o relvado, o lago, as árvores, os patos voando para o sul, as garças, os coelhos continuam lá. Como temos horror ao jardim, mas amamos profundamente a natureza, não pisamos a erva, não nos pomos à sombra duma árvore, não perseguimos uma borboleta: temos medo que estragá-los irremediavelmente. E os jardineiros sempre tão zelosos!
Quanto à horta, restam-nos os legumes virtuais do Farmville, que não nos tornam nem mais saudáveis, nem mais inteligentes, mas que pelo menos nos dão alguma ilusão.
Às vezes é só o que é preciso.
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