[Publicado na Revista Pormenores, Maio-Junho de 2010. As ilustrações são da Teresa Ponte e foram roubadas ao seu blog].
Espreguiçou-se
como um gato e bocejou. Em poucas palavras, Laura Mendes Sá (née Tira-Picos) sentia-se enfadada. Era
o início do Verão: os dias alongavam-se em noites quentes. Sentia a falta,
digamos, de uma vida mais romanesca.
Levantou-se
do sofá. Tinha de se ir arranjar, ou ainda ia chegar atrasada ao jantar. Era o
terceiro sábado do mês, noite aprazada para o “convívio de amigas”. Juntavam-se
as três, inevitavelmente no mesmo restaurante, onde sem surpresa repetiam
sempre os mesmos pedidos, lembravam a juventude, falavam dos respectivos
maridos, ex-maridos e maridos-por-ser, trocavam mezinhas contra as diversas
maleitas que atacam as crianças desde o nascimento até à adolescência e sabiam as
últimas coscuvilhices. O convívio das amigas compunha com frequência o ponto
alto da vida de Laura.
Não
era que a sua vida fosse má. Não era. Graças a Deus! Filha de pequenos
comerciantes da terra, conseguira formar-se em Letras, tinha um bom emprego, uma
vida respeitável. As pessoas tratavam-na por “Drª Laura”, deferência que ela
muito apreciava. Pouco depois de terminar o curso casara com o Fernando, que
conhecera numa daquelas festas memoráveis que o seu amigo Manel Veiga fazia no
monte.
Nesse
tempo, Laura, que não queria passar por labrega junto dos convidados de fora,
levava semanas a ponderar a sua toilette.
Não raro, ia à cabeleireira. Punha uma sombra esverdeada, que dava ênfase aos
seus olhos cor de avelã. Daí a nada, ouvia a buzina do Renault 5 da Paula. A
Cristina, no lugar do morto, gritava-lhe que se despachasse. E as três, de
coração descompassado, aceleravam pela estrada, crendo, cada uma à sua maneira,
que nessa noite, entre aqueles forasteiros, seriam uma espécie de Gatas
Borralheiras prestes a encontrarem o Príncipe Encantado.
Ainda
que diluído, conservava o mesmo esmero na escolha da roupa para levar ao
convívio das amigas.
-
Sim, sim, estás magnífica para a tua versão rústica d’ O sexo e a cidade – gracejou o Fernando, ao ver a mulher entrar interrogativamente
no escritório.
Laura
sorriu agradecida. Lembrou-se, num flash,
como se tinham conhecido numa festa do Manel Veiga. Um rapaz magricelas, de
sorriso franco e óculos de massa aproximou-se dela, oferecendo-lhe uma flûte, com um líquido avermelhado e
borbulhante:
-
Prova. Kir Royale.
Ela
provou e gostou. E fosse porque a noite estava realmente agradável; fosse
porque as bolhas do Kir Royale lhe
faziam cócegas na língua e a deixavam estonteada; fosse porque o Fernando, para
lá dos óculos de massa, era afinal divertido - o certo é que se deixa deixado
enlevar nessa noite.
Estas lembranças fizeram-lhe companhia até cruzar a soleira da
Taberna Alentejana. Da mesa do fundo, a mãozinha rechonchuda da Cristina
acenava-lhe, chamando-a. Laura suspirou
de novo, arreliada por o tempo já ser outro; por o Manel nunca mais ter voltado
à terra; por terem todos envelhecido… até a Paula!
Substituíra o Renault 5 por um
rápido e cintilante Mercedes, que deixava um rasto vermelho à passagem; os
sapatos de salto alto combinavam sempre na perfeição com as suas micro-malas, o
rosto ganhara uma expressão de cera, por força da maquiagem irrepreensível; os
cabelos mantinham-se sempre louros e impecáveis e imóveis. O Fernando, para
quem os sinais exteriores de riqueza serviam para dissimular os sinais
interiores de miséria, zombava com frequência dela. Laura concordava que tudo
aquilo era um pouco demais, mas, simultaneamente conservava pela amiga uma
silenciosa veneração, já que reputava a sua vida como tudo sendo tudo: menos
aborrecida. Havia de ser uma existência cheia dos requintes de romanesco! Ia no
terceiro marido e, diziam as más-línguas que mantinham um caso com um jovem,
ainda por cima seu aluno!
As amigas disseram-se olás entre
risos e beijos monoface. Cristina pô-las rapidamente ao corrente que não estava
ali descansada, porque, meninas, quatro crianças era obra! Ela nem para ela
tinha tempo, quanto mais! Nem sabiam a dificuldade que fora convencer a sogra a
ficar com os pequenos! Que fossem pedindo, já sabiam o que ela queria, enquanto
ela ia lá fora telefonar, ali estava demasiado barulho, e ela tinha de verificar
que estava tudo em ordem. Também não se sentia lá muito bem… a cabeça…
Paula,
melodiosa, garantiu-lhe que assim fariam – e Cristina, pequena e morena, saiu
saltitando da mesa, de telemóvel em punho.
O
empregado jovem trouxe entretanto as ementas e Laura cuidou que ele a olhava
guloso. No fundo do seu aborrecimento, quis imaginar-se desejada. Por isso,
quando pediu ousou encarar o rapazote, desafiadora:
- Para mim, pode ser o linguado.
Aconselha-mo?
O
rapaz sorriu, indiferente, ao tomar nota. Cristina regressava à mesa. Paula erguia
um copo de vinho, instando a que fizessem o brinde da praxe! O empregadote
sumira-se, já.
Laura
acompanhou o brinde, magoada por aquela manifesta frieza. Com certeza aquele
fedelho preferia essas borboletas sem asas e unhas coloridas das garotas da sua
idade! Porém, à medida que ingeria o vinho, reavaliava a situação. De facto,
dava vontade de rir. Ter-lhe ocorrido tal estratagema de sedução! Que idiotice!
O vexame deu lugar à bonomia. O vinho a isso ajudava.
A
saída acabava, sem surpresa, no Casablanca, o único bar dançante. Na pista,
agitavam-se jovens conheciam Humphrey Bogart e Ingrid Bergman através dos
posters que sinalizavam as casas-de-banho masculinas e femininas. Era raro Laura
e as amigas dançarem. Em vez disso, meneavam as ancas em torno duma mesa alta,
bebericando em silêncio bacardis-cola e fazendo de conta que gostavam daqueles
ritmos latinos.
Nessa
noite, Laura ficou efusiva ao chegar à terceira bebida. Incitava as amigas para
que todas dançassem. Não tinham saudades? Como se se recusassem, foi ela
sozinha para a pista. E sem o ter planeado, avistou o empregadito que horas
antes fora insensível aos seus encantos. Mais confiante, elevou o copo numa
saudação a que ele correspondeu, fazendo chocar o seu copo com o dela… afinal…
talvez…Laura avançou, sussurrando-lhe ao ouvido, acariciando-lhe o cabelo,
procurando-lhe os lábios:
-
És giro. Vamos sair daqui…
Perplexo,
o rapaz afastou-a:
-
Drª. Laura. Bebeu demais. Devia ir apanhar ar.
Repudiada
e vexada, Laura virou-lhe as costas. Alguém teria visto aquela pífia cena de
sedução e o seu desenlace? Mas quem era aquele bronco para a rejeitar? A ela?
-
Meninas, vamos embora! Imaginem que aquele empregadinho da Taberna Alentejana
teve a ousadia de se fazer a mim na pista! Desenvergonhado!
Cristina
e Paula indignaram-se. Que triste desaire encerrando a noite!
Ao
outro dia, Laura ficou na cama até tarde. Quando, finalmente, se internou sob o
jacto de água do duche, considerou o desfecho do seu desvario era justo. Afinal,
querer voltar àquela espécie de limbo que antecede a
vida adulta é impossível: pelo menos sem se ser muitíssimo ridículo.
Sem comentários:
Enviar um comentário