A minha carreira literária
começou na 2ª classe, quando escrevi uma composição subordinada ao tema
"Se eu fosse um animal".
Ao contrário dos meus
companheiros e companheiras, que se imaginaram como cães, gatos, pardais ou
borboletas, eu escrevi:
"Se eu fosse um animal era uma égua".
Já não me lembro do que escrevi a
seguir e se calhar não é importante.
Sei que de certo modo, eu ter
escolhido ser uma égua (e não um cão, nem um gato, nem um pássaro, nem uma
borboleta) causou consternação. Afinal, nem éguas nem cavalos faziam parte do
meu mundo. Nunca tinha visto um de perto. Apenas os conhecia dos desenhos
animados: e tinha sido aí que a minha imaginação os tinha ido buscar.
Lembrei-me desta história ontem,
enquanto corria na ecopista. É apenas a segunda corrida e nem sequer é uma
corrida a sério. É mais uma corridinha.
O Inverno longo deste ano atrasou
o plano de começar a correr. Ou se calhar não. Todas as coisas têm o seu tempo:
e talvez que o tempo certo seja este afinal.
Tenho querido muitas vezes
escrever sobre o modo como fazer exercício físico, de uma forma regular, tem
vindo a mudar a minha vida. Quando comento isso, tenho sempre o receio de que o
meu discurso soe a auto-ajuda e/ ou banha da cobra, o que me tem feito ficar
calada. Porque no fundo, a consciência da mudança é uma perfeita novidade para
mim e espanta-me todos os dias.
No início de 2010 pesava 84,6kg,
cansava-me por tudo e por nada, vestia o 46, tinha dores excruciantes nas
costas que frequentemente me deixavam paralisada, estava na ressaca de um
quadro depressivo e tinha uma tese de doutoramento para escrever.
Por causa das dores nas costas
fui ao médico. Precisava de drogas. Ele receitou-me ir à nutricionista. Fui.
No meu regime para perder peso, o
exercício físico apareceu como uma obrigatoriedade. Não que para se perder peso
se tenha de fazer exercício. O peso perde-se à mesa, reaprendendo a comer. Mas
o exercício serve de complemento, ajuda a gastar aquela energia que se teima em
acumular.
E assim, lentamente, bufando, a
contragosto, dei comigo a ir ao ginásio. Se gostava? Não. Detestava.
Custava-me sair de casa. Estava
frio. Estava calor. Os exercícios eram um suplício, um horror, uma tortura
auto-infligida. O corpo doía em sítios que nem sabia que tinham músculos. Como
sabia que todo aquele tormento era ser para meu bem, obrigava-me a sair de
casa, com frio, com calor, quando tinha coisas para fazer, quando não tinha
coisas para fazer. Ia, simplesmente. E descobria que tinha feito bem em ir,
porque quando os tratos de polé chegavam ao fim, toda eu era invadida por uma
onda de prazer e satisfação.
No entanto, no espelho do estúdio
de fitness, eu continuava a ser a
mais gorda, mas em determinada altura, isso deixou de ser importante.
A primeira lição foi que, ao
contrário do que acontece com muitos desportos mais sérios, no fitness, a única coisa que importa é
mesmo participar. Não estamos ali para ganhar a mais ninguém, nem para termos
uma nota no fim do período. É uma competição que se tem connosco próprios. E,
aos poucos, vamos ganhando essa competição.
Talvez o momento epifânico em que
entendi isso foi numa deslocação à Hemeroteca de Lisboa. Para lá chegar, sai-se
na estação da Baixa Chiado e sobe-se rua da Misericórdia acima. Sempre esse
percurso me parecera um inominável horror. Chegava sempre à Hemeroteca prestes
a ter um ataque cardíaco, mal disposta, enjoada, sequiosa, a limpar a testa a
lenços de papel que logo se empastelava. Mas um dia, ao subir a rua da
Misericórdia, descobri que afinal aquilo era muito fácil. Cheguei à Hemeroteca cansada, mas sem estar
perigosamente à beira de um ataque cardíaco. De repente, via o ginásio a fazer
efeito na minha vida quotidiana e pensei que isso era bom.
Quando mudei de casa, temendo transformar-me numa couch potato, a primeira coisa que
procurei foi um ginásio onde ir. Treinar tinha-se tornado, entretanto, a coisa
mais importante do meu dia. A coisa para a qual era imperioso disponibilizar
duas horas, pelo menos três vezes por semana. Se este regime não fosse
escrupulosamente respeitado, o meu humor piorava, a minha energia desaparecia,
a minha paciência desvanecia-se – e eu deixava abria caminho ao regresso da
minha versão antiga, a Filomena gorda, com baixa auto-estima, triste.
Nunca tendo sido particularmente
dotada para a actividade física, nunca senti o apelo de praticar qualquer modalidade.
Nem mesmo quando era criança quis ter uma bicicleta. Porém, agora que por todo
o lado há bicicletas, dei comigo a aprender a andar. A contragosto. A fazer
birras. A gritar muito alto: EU NÃO CONSIGO FAZER ISTO!
Mas consegui. Foi no verão
passado, depois de várias quedas e nódoas negras nos joelhos e nas canelas. A
parar muitas vezes para deixar os carros passarem, o que ainda faço. A
importar-me pouco com o tempo que levo a fazer a volta, talvez o possa
melhorar, talvez possa introduzir-lhe mais subidas e descidas, talvez. O que é
relevante é que foi mais uma pequena vitória.
A tese de doutoramento estava
escrita. O tempo que tinha despendido no ginásio tinha sido o tempo fundamental
para organizar ideias. Não que pensasse muito em coisas (ainda hoje não penso),
mas era como se o cérebro se esvaziasse de ideias e fosse substituído pelo
corpo totalmente empenhado em ganhar mais músculo, em melhorar a sua performance. Em resultado disso, quando
chegava a casa depois do exercício tinha as minhas horas mais produtivas a
escrever. Vinha revigorada, o cérebro fresco, atento, eufórico das hormonas que
o exercício produzia. Faltava a defesa. Mas não havia de ser complicado, uma
vez que até aprender a andar de bicicleta eu tinha aprendido.
No espelho do estúdio de fitness,
ia ocupando menos espaço à medida que o meu corpo ia ganhando contornos
desconhecidos de músculos que nem sabia existirem. A roupa ia-me ficando cada
vez mais larga. Voltei a usar um sobretudo que tinha comprado no primeiro ano
que tinha dado aulas em Portalegre (1999) e ficava-me largo. Um dia,
desencantei de uma gaveta um cinto antigo, que usava quando andava na
faculdade: apertava no mesmo buraco de há vinte anos e eu pesava menos 20 kg.
E, no entanto, isso sendo importante já não é o mais
importante.
Ontem, correndo na ecopista (uma corridinha bem modesta,
diga-se), viajei até à minha primeira redacção e assaltou-me a ideia de que
somos animais e que, como tal, temos o imperativo de cumprir a nossa
fisicalidade. Não faço ideia do que é que isto realmente quer dizer. Mas era só
nisso em que pensava enquanto obrigava as pernas a continuarem, ainda que me apetecesse
parar. De repente, estava a correr, não porque queria emagrecer, mas para me
superar. Porque era, no fundo, um belo animal.
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