23 de janeiro de 2007

Os três perdidos em Portalegre

Acabou o fim-de-semana, começou a interrupção lectiva. A última antes do aperto de Bolonha, por isso há que aproveitar e vir para casa dos pais. E não fazer rigorosamente _nada_. Acabei à tarde de ver a turma de testes que tinha trazido comigo: o que equivale a longos dias sem fazer nada, já que, embora me devesse dedicar com unhas e dentes ao talvez-doutoramento, vou preferir inventar coisas inúteis para fazer - jogar patetices online; ver a Roseira Brava na RTP Memória; eventualmente pegar num livrito qualquer; alugar um DVD; suspirar de tédio. Tudo, tudo o que me tire da terrífica obrigação de escrever, de investigar e de me tornar um bocadito mais inteligente.
Ana voltou a dizer-me: "Escreve no blog"; mas eu pareço acometida da mesma maleita que acomete o pobre Cláudio Ramos - e não me sai nada. Com a diferença que cada um de nós, nas nossas desinspirações, tem os leitores e os comentários que merece.

Passámos os três (eu, Ana e António) o fim-de-semana em Portalegre e foi muito agradável. Sentados num miradouro em Castelo de Vide, rindo alto, decidimos que na nossa velhice compraríamos umas casa de campo e uma casa de praia. Como estávamos no campo, tomámos logo a iniciativa de procurar a casa ideal e, no domingo à tarde, já a tínhamos encontrado em Santo António das Areias, uma terra com um ar inusitadamente próspero e com gente, que fica ali, no meio de pedras no sopé de Marvão. A casa, cujas paredes são em azulejo antigo, verde (se não erro), espreita a praça central por trás de uma palmeira. E daria gosto viver ali, muito devagar, muito em silêncio, cultivando rosas e tomando bules de chá de doce-lima e poejo.

Portalegre, ao domingo, é uma cidade abandonada. Nas ruas acumulam-se sacos de lixo, copos de plástico, garrafas vazias de cerveja, tudo dando à cidade um ar ainda mais torpe.
Um gato escondido debaixo do reboque da polícia faz sair a dona à rua. Traz um pijama e chama pelo Teco que, teimoso, não quer sair de debaixo do reboque.
Procurando um lugar para tomar café, topamo-nos com um grupo de imigrantes de leste, de bafo alcoólico e boca desdentada, que parece saído de um filme do Kustirica. Nativos, só dois ou três velhotes, vestidos de escuro, ao balcão, a serem atendidos pela taberneira brasileira.
Descendo a Rua Direita, passamos pela velha que vive quase em frente à Paloram. A velha está na rua a espreitar o sol, e tem a porta do buraco escuro onde vive aberta. O buraco - sem janela- só uma porta - acomoda um fogão primitivo (lembra-me um camping gás), cadeiras, coisas sem forma, coisas que pressentimos a apodrecer e escuridão. Haverá uma cama? A velha vive só, e mete medo e pena o buraco onde vive só.

Tudo fechado: o Alentejano fechado; os cafés da Praça da República fechados; o Central fechado; o Facha fechado; a Pastelaria do Arco fechada. Exceptuando a velha do buraco, os velhos ao balcão, os imigrantes de leste bêbedos (já ou ainda) não vemos mais ninguém.
Chegamos ao fim da rua e voltamos para cima, só um pouco até apanharmos a passagem para o limite exterior do centro histórico- uma passagem que desemboca na Rua 1º de Maio, praticamente em frente à casa da Vanda (futuro Fino's Palace, que esta província precisa de sinais exteriores de sofisticação).
Damos connosco a explorar um jardim, que fica atrás da muralha. O acesso faz-se por passadiços metálicos. Acho os passadiços elegantes e levam-nos até a uma portinha na muralha. Escondido lá atrás, fica o jardim: nenhuma indicação de que está ali, solitário, silencioso, tranquilo, à espera, entre as traseiras da rua principal e de casas antigas. O sistema de pequenos canais acumulou uma papa lamacenta esverdeada, síntese de pó, humidade, microorganismos e abandono. Alguns bancos, aqui e ali. A relva escassa e um pouco queimada da geada. No chão, candeeiros que deviam iluminar à noite o lugar, estão caídos - e dão ao jardim um ar de inacabado.
Saímos em direcção ao Palácio Amarelo, subimos até à Sé, com a sua fachada triste, descolorada e o seu adro transvestido em parque de estacionamento. Descemos em direcção à rua de Elvas, entramos no carro estacionado frente à Caixa Geral de Depósitos e vamos, num pulo, até ao Pingo Doce comprar o almoço.
O fim-de-semana quase no fim.
E a saudade a instalar-se já: de modo que temos de aproveitar bem os últimos raios de sol, e ver um último pôr-do-sol das curvas, antes que eles abalem em direcção à cidade e eu fique outra vez sozinha.


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