26 de novembro de 2007

A partir de "As criadas" de Paula Rego

Antes, noutro tempo, havia uma velha casa burguesa - dois andares, janelas debruçadas sobre um jardim, separado por um muro alto da rua e dos jacarandás em flor da cidade.

Na velha casa burguesa habitavam apenas fêmeas: unidas pelo género, separava-as a condição.

As duas criadas, que dormiam num quarto, ao lado da cozinha, levantam-se de madrugada e punham a casa a funcionar, sem que as outras se dessem conta. A comida na mesa, a roupa lavada e engomada, a ordem tranquila, o cheiro a limpo tinham sido antes laborados por essas mãos silenciosas, sem as quais a casa não trabalhava.

A sua vida limitava-se a essa servidão e à obediência às duas senhoras. Não as vinculava nenhum amor, nem nenhum respeito. Apenas sabiam que a sua missão era servir aquela viúva, que lembrava um homem, com o seu cabelo curto, com o seu buço escuro sobre o lábio fino, no seu tailleur impecável e monótono. Apenas sabiam que a sua missão era atender aos caprichos da quase-mulher loura e birrenta, filha da viúva.

Um dia, pela manhã, foram chamadas ao quarto da viúva: era um quarto grande, demasiado grande, para uma mulher sozinha. Dividia-se em duas secções – uma, onde estava a cama e outra, que mais parecia uma sala-de-estar, onde a senhora e a filha se ocupavam na sua actividade predilecta: ordenar.

As criadas entraram silenciosas nas suas fardas (avental branco, sobre vestido escuro), preparadas para as ordens do dia.

A viúva estava sentada frente ao espelho, mirando a face enrugada, uma face – parecia-lhe – que já não era a sua. Dirigindo-se à criada mais morena, disse secamente:

- Quero que hoje me faças bela.

- Quero que hoje me faças bela. Ora, minha mãe! Não te agrada o que vês? Ora minha mãe! – gritou a quase-mulher, loura e birrenta, de olhos a luzir, olhando para a imagem da velha reflectida no espelho, e vendo-se a ela, loura e correcta, vestida como se fosse uma princesa. Linda como num conto de fadas. - Quero que hoje me faças bela, quero que hoje me faças bela, quero que hoje me faças bela! - repetia a filha sem parar, humilhando a mãe, reduzindo-a a um farrapo de si. - Ora minha mãe! Olha para mim! Bela sou eu! A juventude fugiu-te! Deixa-te de delírios! As criadas não te podem fazer bela, porque és feia!

E ria muito, feliz da sua crueldade.

Enquanto a criada morena olhava para a viúva encolhida na sua humilhação, a criada da crista olhou para o fundo dos olhos da quase-mulher e disse muito devagar:

-Basta.

Lá fora, o vento fazia ondular os jacarandás, cuja sombra se projectava, espectral, dentro da divisão.

- Já os animais têm voz! - exclamou a loura, furiosa. - Já os animais me mandam calar? Já os animais ousam desobedecer às ordens que lhes dão?

E a criada morena, intimidada, obediente começou, devagar, a tocar o cabelo da sua senhora.

A rapariga ria mais e mais alto e a criada da crista, muito séria, agarrou-lhe nos braços e forçou-a a sentar-se:

- Basta!

A rapariga ficou séria. A mãe chorava baixinho. A criada morena, desintimidada, desobediente, agarrara-lhe os cabelos da nuca e puxava, puxava, numa raiva surda.

O animal soltara-se e o tempo afinal era já outro.





1 comentário:

Anónimo disse...

uma leitura muito ineteressante