5 de julho de 2008

Não há nada pior do que a vida tornar-se num episódio da telenovela da TVI

Este post era para começar com uma citação sobre realidade e ficção. Uma citação que procurei no prefácio da minha edição Penguin do The Picture of Dorian Gray, pois pensava que era uma coisa que o Oscar Wilde tinha dito. Aparentemente estava enganada: e o google não solucionou o problema.
A tese de que queria partir neste post era a seguinte: não é a ficção que imita a realidade; é a realidade que imita a ficção. Não é uma tese nova. Há toda uma literatura sobre ela e toda uma literatura ficcional sobre ela: D. Quixote que perde o juízo porque lê romances de cavalaria; Luísa que trai o marido porque se pretende uma heroína romântica; nós a imitarmos as modas importadas do Brasil e as nossas crianças transformadas em epígonos das personagens dos Morangos com Açúcar.
Imaginemos agora o seguinte: deixamos de distinguir a linha que separa a realidade e a ficção. É normal. Confundimos o vilão da novela, com o actor que lhe dá corpo.
Mas vamos mais longe: criemos para a nossa vida uma narrativa paralela. Reinventemo-nos a cada momento. A minha proposta é que vivamos em autêntico estado de ficção.
Reparai que é uma proposta diversa de "viver em mentira". Enquanto a mentira é um subterfúgio momentâneo, a ficção exige coerência, narrativa, encadeamento, redes complexas de causas-efeitos, fazendo entrecruzar-se um grupo diminuto de personagens, num espaço-tempo reduzido. Sem esses ingredientes, estaríamos, como sempre, à mercê do caos da realidade.
A ficção exige pacto. Quem cria a ficção sabe que o que nos apresenta não é a realidade - mas nós fazemos de conta que é. Sem esse pacto, qualquer ficção se desmorona.
É uma pena que as pessoas que vivem na realidade não se compadeçam com estes modos de vida em ficção. Se achem incomodadas por eles.
Há lá coisa mais bonita do que um dia acordarmos e descobrir que somos as heroínas na narrativa de alguém? Pelo menos, olha, eu que me queixo tanto de à minha realidade faltar um manual de instruções para viver como adulta - teria o problema solucionado!
Como personagem duma ficção viveria inconsciente dessa mesma ficção; acreditaria tratar-se da minha realidade. E no entanto, no exacto momento, em que a minha ficção começasse perigosamente a assemelhar-se a um mau guião de telenovela... no momento em sentisse um puxão no braço, ocasionado pelo manipular do cordelinho ou percebesse que havia coisas incoerentes na narrativa - usar duas roupas diferentes na mesma cena, por exemplo - julgo que seria a primeira a quebrar o pacto.
Se alguém me quiser tornar em personagem da sua ficção, exijo pelo menos ser tratada condignamente: não há nada pior do que nos descobrirmos no meio duma telenovela que, apesar de escrita à pressa, se arrasta por vários milhões de episódios e onde os erros técnicos são por demais óbvios.
Acabado o encanto, o melhor é mesmo desligar o botão e regressar ao quotidiano aleatório e caótico.

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