31 de agosto de 2013

O belo animal (#1)

A minha carreira literária começou na 2ª classe, quando escrevi uma composição subordinada ao tema "Se eu fosse um animal".

Ao contrário dos meus companheiros e companheiras, que se imaginaram como cães, gatos, pardais ou borboletas, eu escrevi:

"Se eu fosse um animal era uma égua".

Já não me lembro do que escrevi a seguir e se calhar não é importante.

Sei que de certo modo, eu ter escolhido ser uma égua (e não um cão, nem um gato, nem um pássaro, nem uma borboleta) causou consternação. Afinal, nem éguas nem cavalos faziam parte do meu mundo. Nunca tinha visto um de perto. Apenas os conhecia dos desenhos animados: e tinha sido aí que a minha imaginação os tinha ido buscar.

Lembrei-me desta história ontem, enquanto corria na ecopista. É apenas a segunda corrida e nem sequer é uma corrida a sério. É mais uma corridinha.

O Inverno longo deste ano atrasou o plano de começar a correr. Ou se calhar não. Todas as coisas têm o seu tempo: e talvez que o tempo certo seja este afinal.

Tenho querido muitas vezes escrever sobre o modo como fazer exercício físico, de uma forma regular, tem vindo a mudar a minha vida. Quando comento isso, tenho sempre o receio de que o meu discurso soe a auto-ajuda e/ ou banha da cobra, o que me tem feito ficar calada. Porque no fundo, a consciência da mudança é uma perfeita novidade para mim e espanta-me todos os dias.

No início de 2010 pesava 84,6kg, cansava-me por tudo e por nada, vestia o 46, tinha dores excruciantes nas costas que frequentemente me deixavam paralisada, estava na ressaca de um quadro depressivo e tinha uma tese de doutoramento para escrever.

Por causa das dores nas costas fui ao médico. Precisava de drogas. Ele receitou-me ir à nutricionista. Fui.

No meu regime para perder peso, o exercício físico apareceu como uma obrigatoriedade. Não que para se perder peso se tenha de fazer exercício. O peso perde-se à mesa, reaprendendo a comer. Mas o exercício serve de complemento, ajuda a gastar aquela energia que se teima em acumular.

E assim, lentamente, bufando, a contragosto, dei comigo a ir ao ginásio. Se gostava? Não. Detestava.

Custava-me sair de casa. Estava frio. Estava calor. Os exercícios eram um suplício, um horror, uma tortura auto-infligida. O corpo doía em sítios que nem sabia que tinham músculos. Como sabia que todo aquele tormento era ser para meu bem, obrigava-me a sair de casa, com frio, com calor, quando tinha coisas para fazer, quando não tinha coisas para fazer. Ia, simplesmente. E descobria que tinha feito bem em ir, porque quando os tratos de polé chegavam ao fim, toda eu era invadida por uma onda de prazer e satisfação.

No entanto, no espelho do estúdio de fitness, eu continuava a ser a mais gorda, mas em determinada altura, isso deixou de ser importante.

A primeira lição foi que, ao contrário do que acontece com muitos desportos mais sérios, no fitness, a única coisa que importa é mesmo participar. Não estamos ali para ganhar a mais ninguém, nem para termos uma nota no fim do período. É uma competição que se tem connosco próprios. E, aos poucos, vamos ganhando essa competição.

Talvez o momento epifânico em que entendi isso foi numa deslocação à Hemeroteca de Lisboa. Para lá chegar, sai-se na estação da Baixa Chiado e sobe-se rua da Misericórdia acima. Sempre esse percurso me parecera um inominável horror. Chegava sempre à Hemeroteca prestes a ter um ataque cardíaco, mal disposta, enjoada, sequiosa, a limpar a testa a lenços de papel que logo se empastelava. Mas um dia, ao subir a rua da Misericórdia, descobri que afinal aquilo era muito fácil. Cheguei  à Hemeroteca cansada, mas sem estar perigosamente à beira de um ataque cardíaco. De repente, via o ginásio a fazer efeito na minha vida quotidiana e pensei que isso era bom.

Quando mudei de casa, temendo transformar-me numa couch potato, a primeira coisa que procurei foi um ginásio onde ir. Treinar tinha-se tornado, entretanto, a coisa mais importante do meu dia. A coisa para a qual era imperioso disponibilizar duas horas, pelo menos três vezes por semana. Se este regime não fosse escrupulosamente respeitado, o meu humor piorava, a minha energia desaparecia, a minha paciência desvanecia-se – e eu deixava abria caminho ao regresso da minha versão antiga, a Filomena gorda, com baixa auto-estima, triste.

Nunca tendo sido particularmente dotada para a actividade física, nunca senti o apelo de praticar qualquer modalidade. Nem mesmo quando era criança quis ter uma bicicleta. Porém, agora que por todo o lado há bicicletas, dei comigo a aprender a andar. A contragosto. A fazer birras. A gritar muito alto: EU NÃO CONSIGO FAZER ISTO!

Mas consegui. Foi no verão passado, depois de várias quedas e nódoas negras nos joelhos e nas canelas. A parar muitas vezes para deixar os carros passarem, o que ainda faço. A importar-me pouco com o tempo que levo a fazer a volta, talvez o possa melhorar, talvez possa introduzir-lhe mais subidas e descidas, talvez. O que é relevante é que foi mais uma pequena vitória.

A tese de doutoramento estava escrita. O tempo que tinha despendido no ginásio tinha sido o tempo fundamental para organizar ideias. Não que pensasse muito em coisas (ainda hoje não penso), mas era como se o cérebro se esvaziasse de ideias e fosse substituído pelo corpo totalmente empenhado em ganhar mais músculo, em melhorar a sua performance. Em resultado disso, quando chegava a casa depois do exercício tinha as minhas horas mais produtivas a escrever. Vinha revigorada, o cérebro fresco, atento, eufórico das hormonas que o exercício produzia. Faltava a defesa. Mas não havia de ser complicado, uma vez que até aprender a andar de bicicleta eu tinha aprendido.

No espelho do estúdio de fitness, ia ocupando menos espaço à medida que o meu corpo ia ganhando contornos desconhecidos de músculos que nem sabia existirem. A roupa ia-me ficando cada vez mais larga. Voltei a usar um sobretudo que tinha comprado no primeiro ano que tinha dado aulas em Portalegre (1999) e ficava-me largo. Um dia, desencantei de uma gaveta um cinto antigo, que usava quando andava na faculdade: apertava no mesmo buraco de há vinte anos e eu pesava menos 20 kg.
E, no entanto, isso sendo importante já não é o mais importante.

Ontem, correndo na ecopista (uma corridinha bem modesta, diga-se), viajei até à minha primeira redacção e assaltou-me a ideia de que somos animais e que, como tal, temos o imperativo de cumprir a nossa fisicalidade. Não faço ideia do que é que isto realmente quer dizer. Mas era só nisso em que pensava enquanto obrigava as pernas a continuarem, ainda que me apetecesse parar. De repente, estava a correr, não porque queria emagrecer, mas para me superar. Porque era, no fundo, um belo animal.


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