2 de setembro de 2013

O belo animal (#2)

Depois de ter defendido a tese de doutoramento era frequente ouvir: “Bom, deve ter-te saído um peso de cima!”. Ainda hoje há pessoas que fazem este comentário e eu fico sempre sem saber exactamente o que responder, porque (lamento informar…), não sei do que estão a falar.

Foi sem dúvida uma tarefa muitas vezes penosa e quase sempre solitária. O momento mais crítico de quem faz trabalho de investigação é saber quando parar. Na verdade, nunca se sabe muito bem, pelo que é fundamental manter o bom senso e impor limites a nós mesmos. Dizer: agora chega. Esse momento ocorre mais ou menos quando na nossa cabeça já se formou um embrião de pensamento. Ele está lá, sentimo-lo a fazer comichão no cérebro, só não sabemos como é que o havemos de parir. Inicialmente, o confronto com a folha em branco – seja ela um documento do word ou uma folha do caderno – é terrível. As palavras não conseguem dar forma ao pensamento, que resiste dentro de nós. Queremos dizer muito bem, lapidarmente, mas nunca conseguimos. Pelo menos, achamos que não.

Ora, uma das coisas que descobri foi a importância de escrever uma primeira versão à mão. Isso vale o que vale: agora, por exemplo, estou a escrever directamente no word e, muitas vezes, escrevo directamente e sem revisão, no blog. Mas a tese era uma coisa mais séria. Se me pusesse à espera que a Musa das Teses de Doutoramento me visitasse e brindasse com a sua inspiração estava bem lixada, por isso, o melhor era mesmo pôr mãos à obra e escrever, escrever, escrever, escrever. Com erros, omissões, rasuras, numa letra às vezes feia, usando cores, asteriscos e setas, procurando o papel certo, a caneta certa. Graças à fisicalidade desse acto, obrigava-me ao treino. E, ao seu ritmo, a tese ia saindo, quase sem percalços.

Haruki Murakami, em Auto-retrato do escritor enquanto corredor de fundo, faz um paralelo entre a sua carreira como escritor e o facto de ter decidido, um dia, praticar atletismo. Nunca tinha pensado propriamente nisso, mas o facto é que escrever e praticar uma modalidade física solitária (no meu caso, comecei pelo fitness) são actos semelhantes, porque ambos assentam no pressuposto da superação dos próprios limites. Pode-se, quer num caso, quer noutro, alimentar a ilusão de que se é dotado para X. Por exemplo, eu, durante muito tempo, alimentei a ilusão de que naturalmente tinha talento para a escrita. Talvez tenha. Mas esse talento nunca será nada se não o exercitar e treinar. Por outro lado, o que não falta é gente sem nenhuma aptidão especial para escrever – para além daquela básica e que consiste em organizar letras em frases perceptíveis – que persiste em escrever. Creio que o mesmo se aplica a qualquer arte: o mundo está cheio de maus romancistas, péssimos poetas, terríveis pintores, inenarráveis actores, e músicos horríveis que tiveram a audácia de não desistir. Se calhar, devíamos pôr os olhos no seu exemplo. E eu devia escrever, escrever, sem medo de errar: porque, no fim de contas, até se pode dar o acaso de acertar.

Quando as pessoas comentam que me deve ter saído um peso de cima quando defendi a tese, ignoram a lição mais valiosa que aprendi desde que descobri o belo animal que sou: o que é notável não é o peso sair de cima, é ter conseguido carregar com ele e pensar que ainda carregava com mais. Ou melhor: desejar que venha outro peso. Rapidamente!

Bem sei. Tudo isto parece uma apologia da força interior, do valor do indivíduo e de patacoadas que tais. Garanto que não. Não vos quero converter a nada.


As minhas descobertas são apenas minhas e se as escrevo é na tentativa de apenas de explicar a mim própria quem sou, aos trinta e sete anos, neste ano da graça de dois mil e treze, preservando-me, para memória futura, se algum dia me voltar a perder de mim. 

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