5 de maio de 2007

1976 - 2007

O país que a minha infância habitou era risonho, colorido e feliz. Era um tempo em que o bife com batatas fritas e ovo estrelado- comida banal de snack-bar - era consumido de vez em quando e tido como manjar insuperável. Falava-se de crise e a crise (pelo menos para mim) era real e tangível. Os televisores eram a preto-e-branco; não havia telefones a não ser no café da Tomásia e nos Correios; ouvia-se os Parodiantes de Lisboa à hora de almoço, acompanhados de batatas cozidas de azeite e vinagre; brincava-se na rua nas noites de Verão, sem medos: os pedófilos, os raptores, os malfeitores, ainda não tinham sido inventados. Só existia o Velho do Saco e esse não saía do sótão da minha avó.
O país da minha infância foi aquele em que simultaneamente nasceu Cristo (filho de uma varina?) e houve a Guerra de Tróia (pela posse do areal?).
A minha felicidade fazia-se de coisas pequenas. Por exemplo: do prazer de rodopiar a ouvir o Sobe Sobe Balão Sobe, vencedor do Festival da Canção em 1979. A música portuguesa parecia-me ter outro encanto. A música popular da Tonicha, com o seu Zumba na Caneca, tinha qualquer coisa de proletário e de enraizado. O Marco Paulo, cantando Dois Amores ou as Doce, entoando o seu Ok,Ko, não eram pimbas. Podiam ser música para as massas; mas pimba nunca. Eu gosto, ainda hoje, de ouvir a maior parte da música que foi produzida nesta época. Era divertida e despretensiosa. Dizia coisas sem ser intelectual e sem ser ordinária. As canções das Doce são um grito de libertação feminina; são a antítese da Mónica Sintra ou Ágata e das desgraças evocadas em amores-traição-adultérios-coisas-de-faca-e-alguidar. E é por isso que ainda hoje são hinos que vale a pena ouvir.
A minha felicidade fazia-se de ler os livros que chegavam no final de cada mês na carrinha da Biblioteca Itinerante da Fundação Gulbenkian. O facto de os livros virem ao encontro da miudagem tornava-os ainda mais mágicos e eu lia-os de rajada. O meu pai ralhava-me por não sair do quarto para ficar a ler. O primeiro livro que tenho consciência de ter recebido foi o Anita no Jardim; tinha 4 anos. Mas antes disso, já me tinham comprado um livro de BD do Marco (a amiga do Marco chamava-se Filomena) e eu já tinha folheado vários livros da minha mãe: um livro doutrinário sobre o Milagre de Fátima (contado às crianças); o Amor de Perdição do Camilo Castelo Branco, forrado a plástico, com uma freira na capa e pequenas quadras de amor no interior, escritas a caneta Bic pela minha mãe e que eu me encarreguei de garatujar e rasgar; um livro verde, muitíssimo salazarento, sobre os grandes portugueses do passado.
A felicidade era também as fatias douradas da minha avó, quentinhas, pela manhã: o cheiro da canela no ar. O meu avô a fazer-me torradas à lareira. O café com leite. Também as matanças do porco. Quer dizer, não era bom ouvir o porco a guinchar antes de morrer e eu fugia. Mas depois, o porco ficava pendurado na cozinha, cadáver familiar, exibindo as entranhas, aula de anotomia ao lado da mesa da cozinha. O sabor das febras grelhadas na brasa, que levavam apenas sal e eram regadas com sumo de limão. A carne temperada para fazer enchidos. A manteiga corada na despensa.
Os Natais em que eu exibia as minhas pobres pobres prendas a toda a gente.
A minha avó Sabina e a história das Botas de Pele de Piolho, inventada pelo pai ou avô dela. A minha tia Margarida e a revista Burda, onde escolhíamos os modelitos da roupa que ela nos fazia, até a diabetes lhe ter encaroçado os dedos e a impedir de costurar.
Todas estas coisas tão espessas em mim...
Pergunto-me onde está agora este país.
Mas a resposta é sempre a mesma. Não foi o país da minha infância que mudou; fui eu que cresci.

2 comentários:

MonteMaior disse...

Amei, amei, amei este texto.

Anónimo disse...

a ideia de ver escrito aquilo que me faz lembrar o que me fez feliz ao longo destes anos. a memoria de um tempo diferente, em que as pequenas coisas eram relamente importantes...