16 de setembro de 2012

A crise de 1977-1985

Nasci em 1976, no rescaldo do 25 de Abril.
Esses tempos remotos da infância vêm-me com frequência à memória, desde que temos uma Troika que zela por nós. Quando a Troika ainda não era Troika e se chamava só FMI já cá tinha estado, em 1977 e em 1983.
Posso falar-vos do que me lembro desse tempo.

Éramos pobres. E quando digo pobres é isso mesmo - pobres. Na nossa casa, que já tinha o luxo de uma casa-de-banho, onde era possível tomar banho duas vezes por semana, normalmente chovia no Inverno. Só se comia bife com batatas fritas ao domingo. Só se comia chocolates no Natal. Não tínhamos carro. Se fosse preciso ir a algum lado, tinha de se ir de camioneta. A televisão era a preto e branco, pelo menos a lá de casa, e só tinha dois canais que, pasme-se, davam todos os programas que interessava ver: o Brinca Brincando, a telenovela, o telejornal, o 1,2,3, filmes do Fred Astaire e do Jerry Lewis e o Tal Canal. Um dia, o avião onde o Sá Carneiro ia caiu. Houve pessoas contentes, houve pessoas tristes. Eu fiquei irritada, porque passaram só requiems e nada de desenhos animados!

Éramos pobres. O meu pai trabalhou durante algum tempo na Setnave. Ia e vinha de motorizada, de dia, de noite. A minha mãe trabalhava no campo, às vezes, quando havia trabalho. Havia sempre pouco trabalho. Quando havia, pegava em mim, ensonada, e carregava-me para casa da minha avó.
Não havia férias: tirando esses longos e maravilhosos meses de verão, em que se podia brincar o dia todo, das oito da manhã às dez da noite, com uma curta pausa para almoço. Íamos às vezes à praia, a Tróia, de camioneta e de barco. Era uma praia imunda e cheia de alforrecas, não o resort que é hoje.

Éramos pobres. Naquele tempo, como agora, grassava a ideia de que tudo se jogava num tabuleiro NÓS versus ELES. Lembro-me da mãe de uma das minhas melhores amigas de infância que não gostava que eu brincasse com a filha, porque na minha família se votava à esquerda e na dela se votava à direita. Essa amiga de infância, que era filha de um GNR, e que era rica (o irmão teve a dada altura um Spectrum e ela não fez o ciclo preparatório através da Telescola, tendo ido estudar para uma escola a sério, em Montemor) dormia num corredor da casa, numa cama retráctil. Lembro-me do meu avô Manel, que jogava comigo às cartas. Perguntei-lhe um dia o que era isso de andar a tomar terras de outras pessoas, numa clara afronta à propriedade privada. Respondeu-me: "Eles não trabalhavam as terras". E o Vasco Gonçalves continuou a olhar para nós do alto do seu calendário, onde permaneceu durante décadas e décadas velando uma espécie de sonho defunto. Lembro-me do vago medo das pessoas a quem chamavam retornados. Dois rapazes vieram para a escola, um deles chamava-se Horácio e nunca mais o vi. O outro chamava-se Miguel e já adulto era vizinho da minha avó e foi para a Bósnia, em missão da Nato. Nunca me fizeram mal nenhum.

Éramos pobres. Na escola não havia professor, pelo menos na primeira classe. Como tínhamos de ir para a escola à mesma, uma contínua dava-nos papel para desenhar. Era um papel grosso e grumoso, que já não se vê em lado nenhum. Era o mesmo papel onde a Toinha, onde se fazia as compras ao sábado de manhã, anotava parcelas e tirava a prova dos nove. Enfim, a professora veio: gritava connosco, tinha uma cana, faltava quase sempre. Mas havia papel para desenhar, poucas canetas de feltro, alguns lápis de cor e de cera, uma borracha verde (ou, no caso dos mais sofisticados, uma borracha vermelha e azul, que apagava, repectivamente, o lápis e a caneta Bic), e um lanche trazido de casa.

Éramos pobres. No entanto, embora invejasse o livro de inglês da miúda que não fez a telescola, tivesse alguma pena de não ter uma Barbie, e me chateasse que a minha mãe não fizesse o bolo do palhaço para o meu aniversário, nunca me lembro de me ter sentido pobre.



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