4 de julho de 2011

Eu e os bichos



I.      O meu contacto com bichos, embora variado, sempre foi muito pragmático: esperava-se que os animais pequenos e fofinhos crescessem. Os pintainhos nascidos na chocadeira; os borreguinhos a que era preciso dar leite e que abanavam o rabo cheios de felicidade; os coelhinhos a que dava couve; os leitões rosados – todos eles acabavam mortos e no prato. Nesta contabilidade não entravam, evidentemente, cães e gatos. A esses destinavam-se outras missões: juntar o rebanho, guardar a casa, caçar ratos e comer restos. Tal como o resto da bicharada, os cães e os gatos NÃO entravam em casa e eram severamente repreendidos se a tal se atrevessem. 

II.    Um dia, decidi que já era crescida e que me apetecia viver sozinha. Mas como viver sozinha-sozinha é muito aborrecido, resolvi adoptar um gato. Rapidamente, o gato tornou-se o rei da casa. Não caça ratos. Longe vai o tempo em que caçava moscas ou borboletas, fugia pela janela, derrubava as bolas da árvore de Natal. As suas actividades favoritas são comer e dormir junto duma fonte de calor. Continua a manter algum interesse por pardais, cujos voos observa com desvelada atenção. Além disso, é um exímio manipulador de pessoas e dos sentimentos. Como é lindo e muito fofinho, a gente perdoa-lhe. E para aqueles que ignoram do que falo, sugiro que aprendam com os filmes do Simon's Cat.

III.  Nesta conjuntura, os cães sempre foram para mim um mistério: não gostei de ler o Nero do Torga, não compreendi o Timbuktu do Paul Auster. Nunca senti a mínima afinidade pelo Lopes, o cão que viveu no meu quintal durante anos. Como é que se pode compreender um animal que parece dar sem pedir nada em troca? O Karpov, por exemplo. Um dia lá estava ele à porta do meu prédio a choramingar. Era Inverno e estava muito frio. Lembro-me que a vizinhança ficou pudicamente enternecida com o cão. O que iríamos fazer? Tirei-lhe uma foto com o telemóvel e pu-la na net. As reacções não se fizeram esperar: havia quem defendesse que eu devia agarrar no cão e deixá-lo no canil; alguém sugeriu que o cão se tornasse uma espécie de guarda do prédio; houve quem o baptizasse de Karpov, nome pelo qual ele começou a responder passado dois dias. O Karpov apanhava biscoitos no ar, gostava de brincar com garrafas de plástico e de passear. Só fazia as necessidades em passeio e nos dias em que esteve à porta do prédio nunca se portou mal, nem sujou nada. O meu gato, assanhado à janela, não o assustava. Na manhã em que acordei decidida a comprar-lhe uma casota, o Karpov tinha desaparecido. O dono tinha vindo buscá-lo, disseram-me. Espero que seja verdade.

IV. Agora, quanto mais conheço os homens, mais gosto dos animais. Escudando-se na razão, no intelecto, na tecnologia, na cultura, os humanos (eu incluída!) escondem a sua animalidade. Mais ardilosos, os humanos raramente agem pela frente. Preferem o volteio e a dissimulação para conseguirem os seus objectivos: conquistar a fêmea (ou o macho), liderar a manada, afastar os oponentes, distinguir-se entre os demais.
Face a isto, resta-me a alegria íntima de pensar que o meu gato e o cão Karpov me tornaram mais humana, isto é, menos orientada para a predação ou para ser a fêmea-alfa do grupo. Mas desconfio que é um snobismo. Afinal, como disse Plauto, homo homini lupus. E o resto é conversa.

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